domingo, 23 de março de 2008

Feliz Páscoa!

As crianças passavam a Semana Santa observando o movimento dos ovos que chegavam. Era a mãe, vinda do supermercado, a sacola cheia de ovos de chocolates. O pai que trazia e levava caixas de bombons para o trabalho. A madrinha que aparecia, depois de tanto tempo, com um beijo e um chocolate para cada um. E vovó com os coelhinhos. E tios e primos e amigos e chocolates.

E a grande cristaleira de madeira, no meio da sala, cada vez maior e mais gorda.

As crianças esqueciam dos brinquedos e sentavam-se diante dela. Acompanhavam, maravilhados, o milagre dos chocolates que chegavam continuamente.

-Um, dois, três...
-Tem mais um aqui.
-Mamãe pôs mais um hj à tarde.

E contavam e recontavam chocolates. A chave guardada no bolso da mãe, os olhinhos doces implorando em silêncio.

Não tinham permissão para provar nem unzinho antes da Páscoa. Na Semana Santa não havia cristão que convencesse mamãe a liberar chocolates. Não, meus filhos! Jesus morreu na Cruz por nós!

E as crianças observavam a enorme cristaleira no meio da sala e perguntavam-se pq é q Jesus foi morrer justo na semana em que chegavam os chocolates. Lá fora, o som da matraca, trac-trac-trac, vigiava severamente as crianças.

E se não fosse o silêncio e se não fosse a matraca e se não fosse o milagre dos ovos que chegavam e o pequeno sacrifício de apenas observá-los dentro da cristaleira, as crianças provavelmente jamais lembrariam do sublime milagre de um Deus que, todos os dias, oferece-se em sacrifício.

Até que a matraca cessa.
Até que se acendem as velas na igreja escura.
Até que o coral entoa Aleluias.
E mamãe entrega a chave ao menino mais velho. E abre-se a porta.

-Aleluia! Nosso Senhor ressuscitou!- uma a uma, as crianças repetem a frase cuidadosamente ensinada pelo pai.

-Verdadeiramente ressuscitou!- responde o menino mais velho, uma, duas, três vezes, entregando os ovos aos irmãos, orgulhoso de sua responsabilidade.

E aquela cristaleira, vazia como o sepulcro de Nosso Senhor ressuscitado, ensinava às criancinhas a verdadeira alegria da Páscoa.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Fernando Pessoa

E oras vejam, achei um Pessoa que me cabe muito bem nesta semana...

Poema
Fernando Pessoa

O céu, azul de luz quieta.
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa -
pontas de dedos a brincar.

No piano anônimo da praia
Tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saia
Todo sentido deste dia.

Que bom, se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.


(em Mensagem, ed. Nova Fronteira)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Tabacarias

Para começo da prosa: tenho paixão por tabacarias.

E pouca gente sabe – ou sabia - disso. Gosto de passar pela vitrine, dar uma olhada para dentro, o ambiente clássico e sóbrio, as paredes de madeira escura, as latinhas de tabaco, as miniaturas de carros antigos, os tabuleiros de jogos, os cantis, os canivetes, o perfume amadeirado, e os ares de galanteria de um mundo perdido em antigamentes que só me pertencem no interior das tabacarias.

Não à toa Fernando Pessoa escreveu um longo poema intitulado “Tabacaria”. E embora no poema, Álvaro de Campos puxe um simples cigarro, o assunto que me leva a escrever aqui é bem outro: os cachimbos.

Não fumo, não trago, não pito, mas confesso: a-do-ro um cachimbo! Com quanta classe uma pessoa enche o fornilho do cachimbo! E para minha surpresa, há regras para isso: descobri três regras diferentes com 8 a 10 passos a se seguir, como um artista... Além disso, o odor do tabaco de cachimbo costuma ser suave e gostoso.
Não nego q faça mal, absolutamente. Mas é gostoso! Este mundo, afinal, é cheio de gente que bebe coca-cola (q não é arte, não tem charme, tampouco é gostosa), ciente de q faz mal!

A variedade de tabacos é impressionante: há os adocicados, para início do dia, os que contêm vinho ou rum envelhecido, os com folhas de limão, os aromatizados com champagne, licor de cassis, com chocolate, com baunilha, cereja e até com açúcar queimado!

Outra coisa que me atrai são as qualidades creditadas aos tabacos: o aroma é sempre elegante, encorpado, distinto, denso, equilibrado, suave, atraente, sutil, singular... Ou arredondado! Tal como o vinho, o tabaco coleciona adjetivos que me seduzem facilmente.

E ainda que ñ houvesse tal variedade de atraentes aromas, haveria a enorme variedade dos formatos de cachimbos. São
tantos que chego a ficar indecisa, ao tentar escolher os formatos mais bonitos!

E não é muuuito bonito?!



Quando pequena, assisti diversas vezes ao filme “Heidi”, baseado num livro de literatura infanto-juvenil. O avô da menininha fumava cachimbo e tinha na parede de casa uma coleção deles. A menininha da história presenteia o avô com um belo cachimbo comprado na cidade, presente que sempre me pareceu de muito bom gosto.

Na época, meu avô paterno também tinha o elegante (não necessariamente saudável) hábito de cachimbar. Ele se sentava em uma poltrona gostosa para isso, e fazia bolinhas de fumaças, divertidas de olhar. Hoje em dia meu avô ñ fuma mais, mas guarda uma pequena coleção de cachimbos, que gosto de conferir sempre q o visito. O aroma gostoso permanece no fornilho de cada um deles.

O hábito de cachimbar ñ é, naturalmente, próprio apenas do avô da Heidi ou do meu. Há uma grande lista de homens -e mulheres- inteligentes, sensíveis, muito elegantes e (claro!) cachimbantes. Podemos começar com o venerável Gandalf, o Mago de “O Senhor dos Anéis” e seus amigos hobitts, seguidos por seu criador, Tolkien. Também C.S. Lewis, autor de “As Crônicas de Nárnia” era homem de cachimbos. Da mesma forma, Sir Arthur Conan Doyle ensinou Sherlock Holmes a cachimbar, enquanto desvendava casos. Mark Twain cachimbava e se bem me lembro, o menino Huck Finn tbm dá suas pitadas (embora eu discorde de crianças cachimbando. É um hábito q cai bem apenas para um moleque: o saci-pererê, q cachimba sem classe, mas com graça). Tio Barnabé tbm tem um cachimbo, e gosto de pensar no personagem de Lobato contando histórias em torno da fogueira e desenhando rosquinhas no ar, para as crianças que sorriem à sua volta.

A estes nobres personagens e autores, se junta ilustre galeria: Bach, Manet, Van Gogh, Baudelaire, Hemingway, James Barrie, Graham Bell, Isaac Newton, Einstein, Freud, Neil Armstrong, Darwin, Clark Gable e até a rainha Victoria!

É desnecessário mostrar as diferenças entre o hábito de fumar um simples cigarro e o de cachimbar. O cachimbo pede movimentos suaves e calmos, enquanto o cigarro sugere tensão, movimentos nervosos e cinzas espalhadas pelo chão. É fácil imaginar o cachimbante lendo, escrevendo, jogando xadrez ou mesmo contando uma história, rodeado de amigos ou crianças, em atitude simpática e serena.

O cachimbo, ao contrário do cigarro, ñ se consome, ñ é descartável, ñ é símbolo do nosso mundo imediatista. Não, não... O cachimbo, com suas elegantes curvas, é lembrança de um passado nobre, pitoresco e pacato , quando sentar para produzir bolinhas perfumadas, para simplesmente pensar ou mesmo para contar histórias ainda era importante.
E era!

Buscando os perfumes suavemente amadeirados deste passado, é que entro nas tabacarias.

domingo, 2 de março de 2008

Mar e som

E de repente, tantos caminhos diferentes, vistos do alto da colina.

Mas o mais bonito, ela pensou, era aquele q começava na areia, o som das ondas batendo nas rochas.