Criava fantasmas como quem cria coelhos. Durante o dia, soltava-os, acompanhando-os em suas corridas - naquele tempo, alguns ainda não voavam. Observava com gosto o esvoaçante subir e descer de escadas, assustando crianças, assombrando mulher. E sorria, senhor de seus fantasmas.
Abriam portas em silêncio, fechavam-nas com estrondo. Rasgando vestidos, soprando medos, ameaçando sonhos, sussurrando ilusões. Até desaparecerem todos, ao final das tardes. Presos, cuidadosamente presos nas gaiolas durante a noite. Ente sonhos, sorria o senhor de seus fantasmas.
Uma noite, porém, fosse por porta esquecida aberta, fosse por arte própria aos fantasmas, escaparam todos. Como coelhos. Gaiolas abertas, fugiram pelas ruas, descobrindo nas trevas o prazer da assombração noturna. De tudo o que lhes fora, em gaiolas, proibido.
Deu pela falta logo cedo, quando foi alimentá-los. Passado o susto - e foi grande - castigou as crianças. Fantasmas fogem sozinhos? Que fazia a mulher à noite que não percebera a fuga? Libertos os fantasmas, onde esconder anseios?
Esforçou-se na procura durante uma tarde. Inteira. Ao cair da noite, não resistiu aos uivos que chamavam, famintos, da rua. Noite atrás de noite caçou-os, perdendo-se neles, confundindo-se. Sombra e assombração. Sorrindo, o senhor e seus fantasmas.
Em pouco tempo esvoaçava, subindo e descendo escadas, assustando crianças, assombrando mulher. Abrindo portas em silêncio, fechando-nas com estrondo. Rasgando vestidos, soprando medos, ameaçando sonhos, sussurrando ilusões. Até desaparecer, ao final das tardes. Uma manhã, não voltou, tal fora o cansaço da noite. Assombração, assombrou-se ao perceber que não o buscavam. Se sempre colecionara fantasmas, como entender que não procurassem por um?
Insistiu nos medos - tudo o que sabia fazer - uivou pelos corredores, atravessou paredes, atormentou pensamentos. Aflito, afligia. Mas se resistiam aos seus brados, escadas acima, não era igualmente capaz de resistir àqueles vindos do escuro. E ainda que a contragosto, voltava sempre a buscá-los, perdendo-se noite adentro. E sorriam, os fantasmas e seu senhor.
De manhã, muitas vezes retornava. Então, punha iscas nas gaiolas, esperançoso de consegui-los de volta. Era urgente tê-los presos, só para si. Que assombrassem apenas as escadas, era o quanto bastava. Mas as iscas eram atraentes e antes que escurecesse, adentrou a gaiola. Ali ficou até que, num leve roçar de panos - não são de lençóis, os fantasmas? - viu-se livre. Acompanhou-os pela noite, perdendo a hora do retorno. Naquela tarde, não retornou. Temia as gaiolas. E sorriam, os fantasmas de seu senhor.
Perdeu-se no tempo. Entre fantasmas, o tempo não existe. Até que voltou, confiante na ferrugem que tolhia as dobradiças das gaiolas. Adentrou a casa, aguardando espantos. Passando pelo espelho encostado em algum armário, não encontrou refletido o que buscava. Num susto, subiu e desceu escadas, clamando e uivando por fantasmas que apenas aguardavam, esvoaçantes, pelo jardim.
Procurou nos armários, entre farrapos de vestidos, arrombou portas. Buscou sonhos, recordou ilusões. Mas nenhum choro, nenhuma surpresa, sequer um riso nervoso. Nada se ouvia.
No lugar dos meninos, homens.
E apenas crianças temem fantasmas.
Em desespero, rasgou as próprias vestes, lençóis brancos que flutuaflutuantes sobre o assoalho. Para encontrar mais e mais lençóis. E mais. E nada. Nada mais. Sob os lençóis, tampouco encontrou-se.
E sorriram, enfim, fantasmas de seu senhor.