Flor e Vento
Mais uma vez, caminhou até o parque. O mesmo caminho que, já mecanicamente, traçava há tantos meses. Entrando no parque, passou um olhar distraído em torno, como se apenas verificasse se tudo estava em ordem. Do jeito que sabia que tudo ali deveria estar. Com o mesmo andar leve e despreocupado, seguiu em direção a um banquinho de madeira bem debaixo de um caramanchão de flores, onde se sentou. Tamborilou com os dedos inquietos sobre a madeira descascada do banquinho, puxou uma flor e acariciou-a de leve, apenas para sentir o aveludado das pétalas cor de vinho. Então, finalmente, abriu o livro que levava consigo. Tudo feito do mesmo jeito que vinha sendo feito dia após dia; há tanto tempo, que mal se lembrava desde quando.
Ali, sob o caramanchão parecia acreditar viver em outro mundo. Um pseudomundo onde, a qualquer momento, ele poderia passar e ela, afinal, estaria mais uma vez junto dele. Poderia senti-lo, ao menos! Ali, sempre experimentava o consolo - ou tormento - de estar com o ele que imaginara ter encontrado um dia.
Naquela tarde, nada de diferente aconteceu. Folheou o livro, fingiu para si mesma estar lendo alguma coisa e voltou os olhos para o portão da alameda principal, já sabendo de antemão as sensações provocadas por aquele simples olhar. Desde que se entregara àquele prazer doentio, as sensações eram sempre as mesmas, e seguiam invariavelmente, a uma ordem certa, lógica e metódica, regrada como um relógio suíço.
Estavam as coisas neste ponto, quando, num gesto meio brusco, fechou o livro. Um algo, invisível e estranho, estava fora da ordem. Faltava um quê indefinível, e um novo vazio, completamente desconhecido invadiu seu interior. Pela primeira vez, após tanto tempo, aquele gesto - em si, tão sem sentido - não fazia, mesmo, o menor sentido! Não devia ser assim; porque não corria tudo como sempre correra até ali? Na anormal normalidade com a qual se acostumara?
Ora... Consciência da inutilidade e irracionalidade daquilo, ela sempre tivera. Fazia mesmo assim, guiada apenas por seus instintos emocionais, obedecendo-os sem discutir muito. Apenas fazia. E até agora, embora sempre sentisse um nebuloso incômodo por estar repetindo religiosamente o mesmo ritual inútil, tarde após tarde, não se sentia forte o bastante para deixar de fazê-lo. Era como se aquela indefinível inutilidade de procurá-lo - a ele, que fora certa vez, o sentido de tudo - fosse a única razão de continuar vivendo. Ainda que ela soubesse não ser assim, simplesmente era.
Repentinamente, tudo parecia girar inversamente, e razão trocava de lugar com a emoção, numa feliz tentativa de confundi-la um pouco mais. Sim, pois se antes a Razão lhe ordenava não esperar vê-lo entrar por aquele portão, agora era a própria Emoção quem fazia o mesmo. Paradoxalmente, a Razão, acostumada que estava àquele ritual, não parecia importar-se mais, dando lugar à uma Emoção incomodada pelo invariável de seus atos. Sádica, a Emoção já não lhe ordenava a repetição daquilo tudo. Estava livre, então? Era isso?
Levantou-se, encarando de soslaio o banquinho e o caramanchão, como se eles fossem os culpados, e como se neles, pudesse encontrar a emoção traidora que a abandonava. Ela a enganara, então! Fizera-a acreditar firmemente que nada mudaria, e que sentiria por ele sempre o mesmo, inda que não quisesse sentir. Sentiu o peito encher-se de rancor por sua própria emoção, que dava espaço - sem pedir licença a ela - a pensamentos racionais, transformando o racional em irracional e vice e versa.
Pior. Agora, parecia coerente esperá-lo ali, mesmo que somente para cumprir o ritual que seguia religiosamente, meses a fio. O ritual que enchia e esvaziava sua vida, a cada pensamento pensado. Refletiu se não seria apropriado sentir-se feliz, já que estava livre daquela obrigação cotidiana e inútil. Não estava. Tampouco conseguia experimentar tristeza. O estranhamento de poder ser tão indiferente surpreendia-a.
Encantada, puxou mais uma flor do caramanchão. E ao virar-se rumo ao portão da alameda principal, sorriu misteriosamente, ao vê-lo chegando. Logo hoje, ele vinha? Juntou os lábios, um como indefinível no canto da boca. Jogou a flor para o alto, para que suas pétalas delicadas experimentassem o vento fresco que corria.
E a menina era a flor, e a flor era a menina, dançando ao sabor do vento.
-Desenho da Joyce, 7 anos; arte com barbante. Abril de 2005-